
Em audiência pública na Comissão Temporária para Atualização do Código Civil, nesta quinta-feira (4), juristas apontaram desafios para a proposta de identificar conteúdos gerados por inteligência artificial (IA). Os convidados também consideraram o direito digital, previsto na proposta, uma inovação legislativa e defenderam a necessidade de o projeto do novo código, em análise na comissão, se harmonizar com o projeto que regulamenta a IA ( PL 2.338/2023 ), já aprovado no Senado e agora em tramitação na Câmara dos Deputados.
O projeto do novo Código Civil ( PL 4/2025 ) é do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que presidiu a reunião. O senador avaliou que a sociedade pode sofrer com instabilidade se não for possível reconhecer a veracidade de vídeos e fotos gerados por IA.
— Quando me chega [uma imagem] pelas redes sociais, começa a nascer realmente a dúvida se aquilo é real ou não. Isso é horrível. Nós podemos encontrar um caminho para que isso não seja um grande fator de dilema e de ansiedade.
Para contornar o problema, o texto obriga prestadores de serviço e propagandas mencionarem que há uso de IA — no caso da publicidade, quando a tecnologia recriar pessoas vivas ou falecidas. Essa é uma das normas específicas para o direito digital no projeto do novo Código Civil. A proposta nasceu em uma comissão de juristas criada por Pacheco em 2023, quando era presidente do Senado.
A advogada Laura Porto, que participou da elaboração do texto, afirmou que a principal intenção do novo Código Civil é proteger as pessoas. Ela defendeu que os consumidores saibam que uma propaganda utiliza pessoas fictícias, por exemplo.
— Diversos influenciadores são criados por IA e estão ali interagindo com as pessoas, falando que estão amando aqueles produtos, e ninguém sabe que aquilo é uma pessoa criada por IA.
A advogada Tainá Aguiar Junquilho questionou se é suficiente a previsão de consentimento expresso da pessoa falecida ou de seus herdeiros em caso de imagens de IA em propaganda. Ela lembrou que, em 2023, o Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária suspendeu uma propaganda em que aparecia a cantora Elis Regina.
— A gente pode pensar talvez em uma posição obrigatória sobre como você quer dispor da sua imagem pós-morte, como ocorre com doação de órgãos. A gente teve o caso relevante da propaganda da Volkswagen com a Elis Regina. O Conar suspendeu porque ficou aquela questão: “os herdeiros autorizaram, mas será que a Elis Regina teria gostado?” — indagou Junquilho.
Já a secretária Nacional de Direitos Digitais, Lilian Cintra de Melo, apontou que os dados artificiais devem ser maioria no futuro. Os convidados reforçaram que os parlamentares devem aprovar uma lei que não se torne desatualizada rapidamente.
— Posso dizer com certeza: o futuro é o dado artificial. A gente, no futuro, não vai ter que dizer o que é artificial; a gente vai ter que dizer o que é verdade, o que vem do humano. Acho que esse tipo de preocupação com a neutralidade tecnológica ajuda também a trazer esse refinamento do texto — disse Lilian.
O texto prevê que o desenvolvimento de IA deve ser transparente, ter supervisão humana e não discriminatório, sendo que a sociedade deve monitorar seu uso em áreas relevantes para os direitos de personalidade. Para a advogada Tainá Junquilho, a responsabilidade deveria ser da Autoridade Nacional de Proteção de Dados. O órgão também coorderará a regulação da IA, segundo o PL 2.338/2023, que regula o setor.
Entre outras novidades, a proposta ainda:
O jurista Flavio Tartuce afirmou que o texto gera uma segurança que hoje é inexistente em relações digitais. É o caso, por exemplo, de milhas aéreas, criptomoedas ou contas de redes sociais em caso de morte, que poderão passar para os herdeiros. Taruce foi relator-geral da comissão que criou o anteprojeto do novo Código Civil.
— A segurança jurídica que há hoje em relação a contratos formados pela internet é nenhuma. Herança digital, contratos digitais, segurança jurídica, responsabilidade civil pela inteligência artificial, locação por aplicativo não têm segurança jurídica nenhuma.
A jurista Rosa Maria de Andrade Nery, que foi co-relatora com Tartuce, considerou o papel singular das IAs como uma das questões dogmáticas — que tratam de princípios considerados inquestionáveis — mais difíceis do código. A tecnologia não se enquadra como coisa, mas também não pode ser considerada pessoa.
Representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Christina Aires Corrêa Lima afirmou que uma das principais críticas ao projeto é a “falta de flexibilidade para acompanhar essas alterações tecnológicas”.
— Temos um dilema: não podemos ficar tão atrás da regulação de forma que, depois, alguns riscos podem se concretizar; [nem podemos] regular muito rápido e ficar de fora das inovações. Na questão da ovelha Dolly [clonada na década de 90], os Estados Unidos da América vedaram a regulação e depois se arrependeram, porque todo esse desenvolvimento científico foi trazido em outros países.
Lima elogiou a regulamentação da União Europeia, de 2024, em que há diversos níveis de riscos, sendo que, nos menores, a iniciativa privada sofre menos controle estatal.
O representante da OAB, Pedro Zanette Alfonsin afirmou que, em nenhum país democrático, o Parlamento pode deixar de regulamentar a IA, sob risco de abusos e fraudes.
— O vazio normativo alimenta uma indústria de sofrimento social. Todos aqui conhecem os alarmantes números dos golpes virtuais. É uma falácia sustentar que deveríamos relegar às agências reguladoras ou ao Poder Judiciário a tarefa de disciplinar questões como IA e seus limites éticos.
A comissão temporária, composta por 11 senadores, foi instalada em setembro. O Regimento Interno do Senado obriga a criação de um colegiado específico para analisar códigos, que são projetos complexos e estruturantes.
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